Ana, uma jovem e graciosa mulher, estava sentada à janela de sua casa, que dava sobre o jardim. No seu rosto debuxava-se um ar de tristeza, que não correspondia em nada ao seu ambiente alegre e festivo.
Havia seis meses se achava casada; era dona de uma bela casa e tinha um esposo que lhe consagrava um amor ardente e puro. Entretanto, nesse momento não cogitava dessa felicidade. Nuvens sombrias lhe perpassavam pela mente, devidas a uma primeira e leve desavença entre ela e o esposo. O matrimônio introduz sem dúvida muitas modificações na vida de dois cônjuges, não realiza, porém, uma transformação súbita dos corações e do caráter. Foi assim que Ana trouxe para a vida conjugal boa parte de seus caprichos e teimosias. Estes caprichos tinham encontrado terreno propício na casa paterna, onde ela, como única filha de seu pai, que cedo enviuvara, fora desde pequena acostumada a ver satisfeitas todas as suas vontades.
Era uma nuvem ligeira, apenas, que ameaçava totalmente o céus conjugal, nuvem que uma resolução decidida, de um coração sensato, facilmente teria dissipado.
Naquela manhã ela exprimira ao esposo o desejo de que ele voltasse mais cedo a casa para juntos fazerem algumas visitas há muito projetadas. “Isto não me será possível hoje,” lhe respondera ele, “uma promessa que fiz e que me é necessário cumprir, tomará hoje todo o meu tempo.” Ana, que tomava muito interesse em fazer visitas, considerou uma falta de atenção. Entendia que devia ter em mais os seus desejos e manifestou este seu sentir em palavras enérgicas, que pouco a pouco se foram tornado acerbas (azedas).
Seu esposo nada lhe respondeu. Terminado o almoço, saiu da sala de jantar, aguardando ainda no corredor as costumadas expressões de despedida da esposa, mas … mutismo glacial! Mais uma vez voltou da escada. Em vão! Nenhum adeus, nenhum olhar sequer ela se dignou dispensar-lhe. Assim saiu, pela primeira vez, sem que sua mulher lhe houvesse feito as costumadas despedidas.
Ana, entretanto, não se sentia bem; recusava, porém, atender à voz da consciência, buscando a todo o transe persuadir-se de que estava no seu direito.
Sentada à janela, rememorava a triste ocorrência daquela manhã, quando lhe foi anunciada uma visita. Era a tia Berta, a única irmã de sua mãe, que desde muito cedo havia desempenhado o papel de mãe para com ela. – Quanto estimo a sua presença aqui, querida tia; sinto-me muito infeliz.
– Infeliz? … Tu!? exclamou a tia.
Ana relatou-lhe então o incidente da manhã; como seu marido fora obstinado e desafável para com ela. “Mas eu me vinguei, acrescentou; não lhe fiz as despedidas do costume e não o acompanhei até à cancela do jardim.”
Uma ligeira nuvem perpassou pelo rosto de sua tia, e, dirigindo-se a Ana, disse: “Não acho que teu esposo mereça um juízo tão desfavorável. Se outro tivesse dito isto, serias a primeira a defendê-lo. Teu marido parece-me estar no seu direito, se não se deixou reter, por um capricho teu, de cumprir a sua promessa.”
Ana estava a ponto de chorar, porque não obtivera o apoio da tia. Resolveu nada mais dizer a respeito e ajustar as contas com o marido quando voltasse à noite.
Ambas se dirigiram então ao jardim, onde, sentadas à sombra de frondoso arvoredo, Ana pôs-se a narrar à tia a sua felicidade conjugal, como se houvesse esquecido aquela cena da manhã.
– Ana, interrompeu-a a tia subitamente, vou contar-te uma história. É uma história triste e dolorosa, mas em todo caso será bom que a ouças.
– Oh, disse Ana, terei muito prazer em ouvir! Lembra-me o tempo em que ainda era criança e escutava as histórias que a senhora me contava. Mas, se é uma história de recordações dolorosas, seria talvez melhor não a contar.
– A dor a tenho comigo, respondeu-lhe a tia, quer eu ta conte quer não. Mas referir-te-ei esta experiência dolorosa de minha vida por amor de ti, e virás a compreender a razão.
“Como sabes, precipitou a tia, o teu tio foi morto em um desastre de estrada de ferro, quando ainda era criança.”
– Sei, respondeu Ana, embora nunca a tenha ouvido referir-se a esse triste acontecimento.
– O trem, continuou a tia, que devia reconduzi-lo uma tarde da casa bancária, em que estava empregado, abalroou contra outro. Houve diversas vítimas e meu esposo foi um dos que imediatamente sucumbiram.
– Que horror! exclamou Ana. Como pôde a senhora suportar tamanho golpe? Penso que eu teria morrido.
– A dor nem sempre mata, volveu a tia com um sorriso triste. Aquele que no-la dá, pode também conceder-nos forças para suportá-la. Era, porém, outra coisa, continuou a tia; era outra coisa que ainda muitos anos depois me fazia sangrar o coração.
“Ainda agora custa-me demorar sobre a recordação deste fato e por isso vou narrar-te em poucas palavras.”
“Eu era então, minha filha, como tu, uma mulher obstinada e caprichosa, que gostava de ver satisfeita a sua vontade. Minha vida conjugal era muito feliz. Embora eu amasse muito a meu esposo, não era capaz de sacrificar minha obstinação ao meu amor. Certa manhã tivemos uma altercação (Disputa, discussão acalorada; polêmica).
Era uma coisa insignificante. Tratava-se de plantar, no jardim, algumas trepadeiras para as quais eu havia já escolhido o lugar. Meu esposo não concordou comigo quanto à escolha que fizera, apresentando diversas razões, aliás justas. Entramos a discutir razões e não tardou que a minha obstinação, na sua forma mais indigna, conquistasse o terreno. Meu esposo teve que partir para o trabalho. Ainda o vejo como, hesitando em retirar-se, aguardava as minhas despedidas. Acercando-se de mim, e lançando o braço ao meu pescoço, disse: “Dá-me um beijo e faze as pazes!”
“Não me senti com forças para dizer-lhe uma palavra. Nem sequer olhei para aquele querido rosto, que jamais havia de tornar a ver com vida. Ainda lhe ouvi os passos quando saiu pelo jardim, fechando a cancela. Mais uma vez olhou para trás, eu, porém, não lhe fiz nem sequer um aceno. Oh, querida Ana, o que senti naquela tarde em que mo trouxeram morto, não me é possível exprimir! Ali estava aquele querido rosto, tão belo e radiante de paz, enrijecido agora pela morte. ‘Dá-me um beijo e faze as pazes,’ foi o que me dissera pela manhã, sentindo eu ainda o abraço forte com que me apertara. Agora seus braços frios e imóveis jaziam cruzados sobre o coração que cessara de pulsar. Seus lábios frios não respondiam mais aos meus beijos ardentes de arrependimento. Era eu quem agora aguardava em vão uma resposta.
“A grande dor que sofri e a coisa mais acerba (angustia) que ela envolvia, o arrependimento, determinaram em mim uma grave enfermidade. Quando me restabeleci, as sarças cobriam a campa de meu esposo. Ainda me lembro, como se fosse hoje, quando, ainda fraca, saí pela primeira vez ao jardim. Floresciam ainda algumas rosas de verão, as flores prediletas de meu esposo, e a um canto jazia os ramos secos das trepadeiras que haviam sido a causa de nossa desavença.”
– Mas, querida tia, disse Ana banhada em pranto, como lhe foi possível suportar tudo isso?
– Foi na verdade um sofrimento longo e triste, minha filha, mas meu adjutório foi Aquele que não quebra a cana trilhada e que não apaga o pavio que fumega. Tive também a consolação de ver meu filhinho crescer e desenvolver-se, apresentando sempre maior semelhança com o pai. Mas agora devo ir, minha querida. Antes de despedir-me, porém promete-me não esquecer o que te narrei.”
– Nunca! respondeu Ana, do fundo do coração.
Com que impaciência Ana aguardava naquela tarde a volta do esposo! E como cresceu a sua ânsia, quando ele não apareceu à hora do costume! Finalmente, quando chegou, foi indizível a sua alegria por tornar a vê-lo são e salvo. Em vez de uma ajuste de contas, uma confissão sincera e humilde de sua falta restabeleceu a primitiva harmonia.
Tempos trabalhosos, de aflições e cuidados, sobrevieram também, no decurso do tempo, à casa de Ana. Vieram, porém, encontrar os dois esposos unidos para a luta. E ainda muitos anos depois Ana podia repetir à tia: “Desde aquela visita memorável nunca mais contendi com meu esposo, e quando temos de separar-nos, ainda que seja por algumas horas, as despedidas são tão íntimas e afetuosas, como se fossem as últimas que trocássemos.